CARTOGRAFIA URBANA SENSÍVEL: Uma experiência na fronteira Brasil-Uruguay
A palavra cartografia remete a mapas, desenho em duas e/ou três dimensões confeccionados digitalmente que podem ser impressos ou virtuais que representam um espaço, um lugar seja ele geográfico, imaginário ou conceitual. Os mapas são meios de comunicação e análise. Comunicação visual, mas também imagética, sonora, sensitiva. De não só localizar, mas de sentir o lugar. A cartografia não só comunica como é fotografia, psicologia, desenho. Pode-se dizer que a cartografia de um espaço é determinada por um conjunto de mapas que são representados de maneiras distintas, pois cada mapa tem um objetivo específico e uma maneira de representação próprios. A dissertação de mestrado, ainda em andamento, intitulada “CARTOGRAFIAS URBANAS NA LINHA DE FRONTEIRA: travessias nas cidades gêmeas Brasil-Uruguay” tem como objetivo investigar os novos sentidos e potencialidades das cidades de fronteira através do método da cartografia urbana sensível. Devido a certa inquietação sobre os atuais discursos hegemônicos referidos a essa fronteira Brasil-Uruguay que recebe epítetos de fronteira-viva, fronteira-modelo, fronteira da paz, sendo considerada a fronteira mais aberta, densa e homogeneamente povoada – adjetivações apontadas por Adriano Silva Pucci (2010) no Estatuto da Fronteira -, a intenção é colaborar para que o discurso da Fronteira seja mais íntegro no contexto contemporâneo, e enuncie as novas potencialidades. Se faz necessário compreender o que é ser e estar em fronteira. Um conceito que constantemente evolui, se cria e re-cria no espaço-tempo. De um lugar de conflito, disputa por poder e posse territorial, até um lugar estratégico de potencializadades e integração. Ser fronteira é lidar com o dualismo cotidiano, perceber o eu e o outro, as diferenças e semelhanças, se enraizar as tradições ou desejar a errância e nomadismo. Segundo Deleuze, fronteira pode ser entendida como movimento, construção e produção, aproximando-se mais como abertura e atualidade do que como acabada, finalizada. Locais de mutação e subversão. Também são sítios de agitação e do excesso onde os “limites” são ultrapassados tornando então um espaço de ruptura – conflitante ou pacífica. É no limiar que se aprende a conviver com o imprevisível e inacabado. (DUARTE,2012) A pesquisa de mestrado pretende contribuir para a compreensão dos acontecimentos, do que existe e do que (re) existe na linha de fronteira, mas não apenas em uma função recognitiva – conhecer e re-conhecer o mundo e as coisas que o cercam – e sim, aprender com a diferença, tudo aquilo que foge dos padrões até agora estabelecidos.
O MÉTODO
A cartografia urbana sensível, cunho qualitativo, pode ser entendida como o modo de acompanhar os processos e não o de quem busca respostas ou motivos pré-estabelecidos. Os mapas resultantes dessa cartografia buscam a expressão dos diversos cotidianos, da vivências e trocas que acontecem durante a errância. E a complementação dessa cartografia pode se apoderar de fontes variadas além das escritas-teóricas-conceituais. Os operadores conceituais podem surgir de filmes, de narrativas com moradores, de uma música, leitura e outras singularidades. Os mapas oficiais carregam consigo importantes informações das cidades, como localização de edificações, quarteirões, ruas, além dos aspectos naturais do relevo, hidrografia, vegetação e uma infinidade de existências. Porém, esses mapas não conseguem dar conta de toda informação que pulsa e vai além de aspectos físicos, como os afectos, as sensações dos lugares que acolhem ou que repulsam e da singularidade de cada trajeto/caminhada. Esses e outros eventos ignorados por esses mapas oficiais podem ser complementados, ou melhor, sobrepostos por outros mapas desenvolvidos através da cartografia sensível, do olhar, observar, da caminhada errante. Mapas que reconhecem e deixam registrados os múltiplos sentidos. Em síntese, a cartografia sensível contempla tanto o processo de deriva, uma caminhada errante, como também uma corpografia ao lançar o corpo-cartógrafo em um território a ser desbravado. Dessa forma, a cartógrafa lança seu corpo por toda linha de fronteira em uma viagem ininterrupta pelas doze cidades-gêmeas da fronteira Brasil-Uruguay. Chamamos de pedagogia da viagem um dos procedimentos metodológicos que acontece pelo universo da descoberta, além da viagem exploratória, mas uma constatação de certos aspectos que estavam ali – ocultos. A viagem embora trace caminhos preparados, conhecidos – “porque de certa forma conhecemos para onde vamos” – pode nos apontar novos e diversos caminhos a seguir (pensar). E no mesmo caminho abrindo brechas para expandir nossos próprios caminhos e sempre reorientar criticamente nossas concepções (cartografia). Então podemos dividir a experiência da pedagogia da viagem em três partes: temos uma bagagem antes da viagem, preparamos as malas com certas intenções (a expectativa/ansiedade); viajamos e nos abrimos ao novo, carregamos coisas pelo caminho e deixamos outras (a experiência) e; por fim chegamos, desfazemos as malas, com todas as coisas coletadas junto com as que levamos, é preciso organizá-las, pensá-las, saber o que guardar, o que dar, o que presentear, o que devolver e o que esquecer (resistências/ pausa/reflexão). Seria essa uma pedagogia da viagem, uma pedagogia do entre, da fresta nas cidades e nas concepções de qualidades de um bom lugar. Por outro lado, essas experiências no entre, são do que se agita na fresta, “o sentido é apenas um vapor movendo-se no limite das coisas e das palavras” (Deleuze, 2006, p. 225). Por isso adentrar no mundo da viagem nas frestas da cidade é da ordem da complexidade e das multiplicidades. A pedagogia da viagem por frestas permite experimentá-las, descobri-las e vivê-las inventando novas relações, para fazer emergir quem sabe relações menores, desterritorializantes, provocando novos encontros e acontecimentos (hospitalidades e hostilidades). O trajeto da viagem organizada pelo Laboratório de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da UFPel, como mostrado na Figura 1, teve início no dia 14 de março de 2016, saindo da cidade de Pelotas com destino ao Chuí – Chuy e retornando no dia 19 de março de Aceguá – Acegua, totalizando aproximadamente 2.110km percorridos em seis dias.
Figura 1 – Trajeto percorrido na fronteira Brasil-Uruguay. Fonte: Google Maps, 2016. Edição da autora.
Em mãos um diário de viagem, suporte que guarda/registra falas do pensamento inquietante no processo errante. Composto por folhas brancas e mapas básicos, o diário se tornou um instrumento precioso, ali é possível reviver, extrair as sensações de cada travessia ou perambulações que a subjetividade convidava. Outro suporte era a câmera fotográfica que como forma de capturar momentos, situações, paisagens permite entender o olhar do cartógrafo, em quais situações a necessidade de um registro era inquietante. E a partir da experiência na viagem – a própria vivência – e aplicação do método da cartografia urbana sensível, criam-se planos e atravessamentos para contrapor o discurso hegemônico de uma fronteira única, para construir uma fronteira carregada de heterogêneos e complexidades.
A EXPERIÊNCIA
Como arquiteta, urbanista, cartógrafa e corpógrafa adentrei aos acontecimentos das cidades de fronteira, permiti criar desvios de percurso como parte do processo. A própria dinâmica da fronteira se apresenta com uma variedade de caminhos, ou seja, delimitar prioridades de olhares é um desafio. Durante a caminhada errante percebe-se a complexidade da fronteira e a impossibilidade de reduzi-la em um mapa fixo, as cidades pulsam de tal forma que parecem gritar, se fazer presente seja pelas cenas dos sujeitos, nas memórias, pelo vivido e experimentado. Provocada pelos sons, cheiros, corpos percebe-se como a linha de fronteira é o lugar de mistura de cotidianos – diferente de monotonia. Cada dia as fronteiras reinventam o espaço, apropriam-se e multiplicam o sentido dos lugares; não excluindo o estruturado, mas somando-se. Trata-se de uma memória urbana ativa. Conformada pela coexistência de mundos, por atravessamentos e heterogêneos. Pessoas, construções, patrimônio, urbanidades, veículos, gestos foram várias cenas que chamaram a atenção tanto pela simplicidade ou complexidade. O corpo resistia, reagia sobre outros corpos-cidadãos ou corpos-urbanos. Às vezes não se entendia o motivo, somente o desejo do registro, como se a câmera tivesse vida própria e exigisse o clique. Como forma de exemplificar o processo da cartografia sensível – muito embora a essência está inscrita no próprio corpo, e qualquer tipo de representação já limita ou diminui a grandiosidade da experiência -, a tentativa é de poder externar a ebulição da fronteira para outros leitores-espectadores a fim de desmistificar o discurso hegemônico relacionado a essa região. A seguir, um relato das cidades-gêmeas de Aceguá/BR e Acegua/UY, descritos através de uma collage, próximo ao conceito da “A Collage como trajetória amorosa” de Fernando Fuão (2011). A cidade de Aceguá/Br e Acegua/Uy são separadas por uma rua, em um caráter mais rural, as cidades juntas somam 5.887 habitantes. A Figura 2 mostra uma imagem de satélite onde lê-se a estrutura urbana e cartesiana de seu desenvolvimento. Compreende-se o desenho urbano, a composição das quadras e lotes, a distinção das vias coletoras e locais, o entendimento da topografia, a vegetação presente, os rios e a demarcação política do território.
Figura 2 – Mapa aéreo das cidades de Aceguá/BR (ao norte) e Acegua/UY (ao sul). A linha vermelha é a demarcação política entre os dois países. Fonte: da autora.
Mas, é a partir de um processo de collage, como exemplificado na Figura 3, que floresce a essência do lugar. O plano de fundo invisível da estrutura agora toma corpo, voz e vislumbre. A cartógrafa ao caminhar, atravessar entre as cidades, não conseguem distinguir o começo ou fim de cada país, conversam com tanta naturalidade que se imagina ser uma cidade única. Se na imagem de satélite a percepção do limite é nítida, inerte e objetiva, na collage intenta transmitir a sensação percebida no processo de caminhada errante, a diluição e indistinção.
Ainda na collage é possível somar os afectos e perceptos sentidos na travessia. A recepção do outro, a hospitalidade e hostilidade, o pulsar pacato da cidade pequena, o som dos cavalos pelas vias, a língua portuguesa e o espanhol que colidem e flutuam ao mesmo tempo, os espectros de um cenário de guerra e os espectros de uma luta de classes (…) São visões, vozes, tatos que o corpo recebe e tenta externar em collages, cartografias sensíveis e narrativas que rompem e agregam a estrutura. Dessa forma, em uma linguagem não-espetacularizada, a dissertação busca na história do método, artifícios de comunicação que agreguem na composição do cenário contemporâneo das cidades-gêmeas de fronteira Brasil-Uruguay. Sair da zona de conforto, de discursos homogêneos para a realidade concreta. Buscar na diferença indícios de novas potencialidades que ajudem no planejamento urbano em constantes intervenções. A contribuição que a pesquisa se propõem é de pensar novos meios de acompanhar processos contemporâneos, extrapolando os métodos tradicionais, na medida em que inova sua forma de apreensão do uso e ocupação dos espaços urbanos. A lógica de pensamento não procura separar sujeito e objeto, arquitetura e usuário, espaço público e privado, Brasil e Uruguay, mas sim entender as qualidades dos espaços públicos dessas cidades como entidades que carregam potência de agir, ou como Espinosa mesmo coloca: “força de existir”. E essa potência envolve afecções e afetos, os quais vão se desencadeando, se articulando e se desdobrando quando ocorre o encontro entre corpos. Durante o processo cartográfico, a caminhada errante, ficou nítida a complexidade da fronteira e a impossibilidade de reduzi-la em um mapa fixo, as cidades pulsam de tal forma que parecem gritar, se fazer presente seja pelas cenas dos sujeitos, nas memórias, pelo vivido e experimentado. Dessa forma, acredita-se que com o estudo dos conceitos e com a sobreposição dos mapas coexistentes (cartesianos e sensíveis), um novo discurso – inscrito no próprio corpo-cartógrafo – emergirá com mais fidelidade, constituindo mais uma fonte de consulta para arquitetos, urbanistas e profissionais atuantes na criação, planejamento e intervenção dessas cidades fronteiriças.
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. V. 3.
DUARTE, Luís Sérgio. O conceito de fronteira em Deleuze e Sarduy. Textos de História, v.13, n.1/2,2005. Góias – GO.
FUÃO, Fernando. A collage como trajetória amorosa. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.2011.
PUCCI, Adriano Silva. O estatuto da fronteira Brasil-Uruguai. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2010